sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Videogame - a diversão é para todos

Você entra na sala de um apartamento. De frente para a tevê, sorrindo e brandindo um joystick no ar, estão quatro pessoas: um homem na faixa dos 60 anos, uma mulher com 30, seu marido da mesma idade e a filha de 7. Todos se divertindo na mesma atividade: jogando videogame. Ficção científica, utopia nerd, uma imagem do futuro de 2037? Não: bem-vindo a 2010. 

Tudo ótimo. Mas é certo que muitos pais e familiares mais velhos continuam encarando o videogame com desconforto e apreensão, um inimigo tão horrível quanto a televisão. De tempos em tempos surgem casos na mídia demonstrando os perigos do abuso de jogos eletrônicos: o caso do coreano que abandona a vida social e passa horas na frente do computador; o americano desajustado que parte para uma matança na vida real baseado no que fazia nos games... Não é à toa que no Brasil há projetos de lei que lutam para proibir os jogos mais sangrentos.

Os pais que não acompanham o que os filhos jogam muitas vezes tendem a criar um estereótipo sobre os videogames: ou imaginam diversões bobas de naves espaciais e bichinhos coloridos ou, o contrário, violência em níveis desmesurados. Porém, ao passo que a chamada “geração X” (pessoas que nasceram na década de 70 e início de 80, ou seja, que já tiveram acesso a jogos na infância) cresce e começa a gerar os filhos da próxima geração, as relações familiares diante do videogame também mudam radicalmente.

Os pais que se divertiram com o Atari aprovam os novos jogos dos filhos

Ana Margarites, designer e professora de 28 anos, por exemplo, foi quem apresentou pela primeira vez os jogos eletrônicos para Júlia, sua filha, que hoje tem 8 anos e é fã de jogos digitais. “Videogame parece uma forma de diversão menos passiva que a TV, pois exercita o raciocínio rápido, a estratégia e a inteligência espacial, além de inserir o jogador numa posição de controlar uma narrativa, o que pode ser muito estimulante”, diz Ana.

Embora não ache uma boa ideia deixar a filha jogar por muitas horas (assim como seria contra o abuso de qualquer atividade, seja televisão, seja dança ou leitura), Ana é bastante liberal quanto aos jogos. Se daqui a alguns anos Júlia quiser rodar um game mais violento, ela vai entender. Para a designer, a função dos pais está mais em munir a criança com ferramentas para decidir entre o certo e o errado do que proibir. O que muda é que Ana, como os novos pais dessa geração, também jogaram games violentos na adolescência, e sabem que isso não fez mal. E o melhor: Ana acredita que os games possam servir como uma ponte para o diálogo entre pais e filhos.

Do Pong ao Wii Ignorando os experimentos realizados em faculdades, os videogames domésticos surgiram com força através do Pong, da pioneira Atari, no alvorecer da década de 70. Em Pong, game de pingue-pongue virtual, os jogadores controlavam um botão redondo que movia a raquete, representada por um prosaico retângulo branco no fundo preto da TV. A partir desse início, a tecnologia foi evoluindo em saltos cada vez maiores, e o aprimoramento gráfico aumentou quase junto com a popularidade dos jogos.

O console Atari gerou um boom poderoso que se estendeu até a metade dos anos 80. Todo mundo queria ter um videogame. Porém, passado o fator “brinquedo novo”, lá por 1983 nos Estados Unidos e um pouco depois aqui, os jogos eletrônicos foram relegados ao gueto nerd e começaram a ser consumidos quase exclusivamente por pré-adolescentes, tímidos meninos de 16 anos e consumidores vorazes de junk food. A partir daí é possível falar de uma curva ascendente de popularidade pontuada por vários avanços: o computador passou a servir também de videogame, a Sony lança o Playstation 2 (que atuava como um leitor de filmes em DVD), até culminar com a japonesa Nintendo lançando o Wii em 2007.

O Wii é um marco. O console simplificou o conceito de videogames ao limite do intuitivo. O joystick, transformado em um bastão cujos movimentos são captados por um sensor, permite que até um senhor de 70 anos consiga jogar uma partida de boliche virtual em menos de 5 minutos (e já há instituições para idosos utilizando o Wii para a manutenção do raciocínio e da motricidade dos velhinhos). Foi o golpe final contra aquela noção de que games eram apenas para a garotada.

Hoje, a indústria de jogos eletrônicos movimenta mais dinheiro que a cinematográfica (no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Cultura, jogar é mais comum que ir ao cinema). Um baita número: mais de 80% de norte-americanos são gamers. E ainda tem gente que diz que videogames são irrelevantes.

Mario Bros é cultura. Os dados estão aí para provar que nunca se jogou tanto e que a demografia nunca foi tão diversa, em termos de idade e sexo. Como foi visto, a visão que os pais e a sociedade têm do formato vem mudando. Porém, em vez de apenas catalogar os games como um novo nicho da cultura de massas como a televisão e uma nova fonte de lucro para megacorporações, cabe refletir sobre o impacto cultural e artístico dos videogames.

As reverberações mais óbvias se dão no cinema hollywoodiano. Além das adaptações (geralmente catastróficas) de games para a tela grande, como Tomb Raider, Doom e Max Payne, pode- se notar uma influência cada vez maior da estética dos videogames na própria maneira de filmar. Filmes como 300, de Zack Snyder, e Matrix, dos irmãos Wachowski, são exemplos clássicos de como a sétima arte absorveu certos conceitos dos jogos.

A música também foi influenciada pelos games. Um bom exemplo são artistas do gênero eletrônico que se inspiram nos sons 8-bits para compor. No Brasil, o músico e produtor Alexandre Kassin, do grupo Kassin + 2, chegou a criar o projeto “Artificial” para explorar as possibilidades do portátil GameBoy como instrumento.

Porém, isso é versar sobre o que há de mais explícito em termos de relevância cultural. A literatura, por exemplo, tem sofrido influência? Um caso recente foi alvo de discussão: Daniel Galera, escritor que aos 30 anos é uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea, lançou em 2006 o elogiado romance Mãos de Cavalo. No livro, há uma cena em que personagens jogam o clássico game de corrida Stunts, cena essa usada de forma metafórica. Não obstante, alguns críticos reclamaram dessa inserção no livro, como se os videogames fossem um material menos nobre, e não devessem aparecer na literatura.

Galera, um gamer inveterado, defende os jogos como fundamentais na formação do seu imaginário. Apesar de suas fontes mais diretas serem literárias, afirma: “[Os games] influenciaram minha imaginação, minhas ideias, minha forma de ver o mundo e minha personalidade, e portanto influenciam também meu trabalho como autor de ficção, que está diretamente ligado a tudo isso. O humor dos jogos da série Monkey Island, por exemplo, com certeza está presente em meu próprio senso de humor”.

Nascido em 1979, o ficcionista cresceu podendo observar toda a evolução dos videogames. Logo após a controvérsia causada pela cena de seu romance, Galera inaugurou um blog de discussão – séria, ainda que bem-humorada – sobre o assunto: o Jogatina, visitado não só por gamers mas também por literatos. O espaço desapareceu seis meses depois com o fechamento do portal NoMínimo, e o projeto não emplacou em outros sites. Apesar disso, o autor brasileiro continua pensando a fundo no tema e, no momento, está para publicar um longo ensaio sobre o jogo Prince of Persia.

Quando perguntado se não teria interesse de escrever histórias e roteiros para os games, Galera diz que gostaria muito, mas que isso é impossível sem a colaboração de algum programador. Não descarta a hipótese, porém, de algum dia vir a fazer justamente isso.

É pensando nessas novas possibilidades de criação que surgem cursos focados na área em diversos lugares do Brasil. Fábio Fernandes, escritor e especialista em ficção científica, leciona no curso de Tecnologia em Jogos Digitais da PUC-SP, onde dá aula, entre outras matérias, de “Narratividade e Games”, uma espécie de oficina literária voltada para o desenvolvimento de jogos. A narrativa nesse meio tem muitas especificidades, especialmente na questão da linearidade, visto que o jogador atua, de certo modo, como coautor da história que joga. “De modo bem básico, dizer que o roteiro de um jogo é multissequencial significa que a ação pode ter mais de um começo, mais de um meio e mais de um fim”, diz Fernandes. Para ele, o impacto dos games no cinema é bem evidente no plano estético, por bem ou por mal (cita Transformers 2, tão centrado nos efeitos especiais que esqueceu o roteiro), e na literatura se dá não só em referências diretas, como no caso do livro de Galera, mas também através de um ritmo “videoclipeiro” na prosa.

Há uma nova geração de artistas influenciados pela linguagem dos games

O curso oferecido prepara o aluno para trabalhar tanto em uma gigantesca indústria como em um pequeno projeto, os chamados jogos indies (abreviação em inglês para independente). Fernandes vê com bons olhos a emergência dos indies, criados com pouco dinheiro e muita criatividade por uma equipe reduzida.

Novos caminhos Se no início dos games havia um número limitado de categorias de jogos, como “luta”, “corrida” e “nave espacial”, hoje em dia as possibilidades se abriram bastante, e não apenas graçasà tecnologia. Muitos dos games indies se situam inclusive na contramão desses avanços. Um exemplo recente é o caso de Braid, que se vale de gráficos simples e uma estrutura que, de longe, parece a do clássico Super Mario da década de 80. Basta jogá-lo para entender que o buraco é mais fundo.

A premissa parece uma mescla de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, com o fantástico: o personagem, um garoto de terno, deve controlar o fluxo do tempo das mais diversas maneiras para, em cada um dos mundos representados, resgatar peças de quebra-cabeças que lhe permitirão consertar os erros do passado. Os cenários do jogo são inspirados nas pinturas impressionistas (o título, Braid, pode inclusive ser lido como uma referência a um quadro de Renoir) e, por mais que a lógica do jogo ainda seja saltar plataformas e pular na cabeça de monstrinhos, as infinitas formas de brincar com a passagem do tempo ampliam as possibilidades de significação. O game culmina em um final tão misterioso quanto catártico, dando a impressão de que só seria viável naquela mídia, o videogame, por mais referências literárias e plásticas que possam ser traçadas. Jogos como esse são a prova derradeira de que o formato pode servir como um campo de criação artística e autoral tão poderoso quanto o cinema ou a literatura. Os videogames estão dando apenas os primeiros passos, e só o futuro mostrará tudo o que pode ser realizado nessa área.

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