segunda-feira, 21 de março de 2011

Perder o foco as vezes, também é importante

Era um dia qualquer e o matemático foi tomar banho. Ao entrar na banheira, percebeu que o volume de seu corpo imerso movimentava um volume igual de água. Naquele momento ele não se conteve. Saiu da banheira, atravessou a porta em direção à rua e, completamente nu, gritou “Eureca! Eureca!” (“Descobri”, em grego). Foi desse jeito, íntimo e inesperado, que o grego Arquimedes (287-212 a.C.) resolveu um problema que o atormentava havia tempo: descobrir se a coroa encomendada pelo rei de Siracusa era totalmente de ouro ou se o artesão contratado havia misturado prata (metal mais barato) à joia. Essa história – contada pela primeira vez pelo arquiteto romano Vitrúvio cerca de 200 anos mais tarde, e que acabou se tornando lenda – mostra que a partir de observações simples Arquimedes teria desenvolvido parte de sua importante teoria sobre a lei do empuxo

Talvez ele nem estivesse pensando na coroa naquele momento. Quem sabe se preparava para participar de um banquete, ou estava simplesmente tomando um relaxante banho. O fato é que Arquimedes teve o impulso de observar o movimento da água na banheira – igual a um gato que fica “viajando” enquanto vê o líquido indo para lá e para cá em seu pote de água – e disso veio o insight para a solução do problema. Mesmo que não se saiba até que ponto essa história é verídica ou lenda urbana da Grécia antiga, ela revela que a mente despreocupada, divagante, é matériaprima para o pensamento, a existência e a evolução humana. Devanear, portanto, é importante para a vida.

Reunião de referências

Pode parecer exagero dizer que devemos “viajar na maionese” para viver, mas sem essa viagem não alargamos nossos horizontes para abraçar tudo o que pudermos alcançar. Claro que é possível viver e curtir a vida numa rotina estabelecida, sem muitos riscos e surpresas que podem nos “tirar do prumo”. Mas deixar-se levar pelos pensamentos e ideias aparentemente desencadeados é um convite a novidades. Ao nos desligarmos do racional, abrimos caminho para o devaneio, para os pensamentos livres que, de tão livres, podem lembrar um filme de Tim Burton. Quando divagamos estamos, mesmo que inconscientemente, coletando e arquivando uma série de referências que podem vir a ser usadas em breve ou no futuro, para resolver um
problema ou desenvolver um projeto.

“É como preparar uma refeição. Você vai buscar ingredientes em vários lugares para montar o prato”, afirma o professor Antonio Carlos Brolezzi, do Instituto de Matemática e Estatística da USP. A solução de um problema matemático, diz ele, é feita da reunião de diversas referências. Não importa quantas informações foram usadas para resolver o enunciado nem se a solução foi alcançada dentro ou fora dos padrões para aquela equação. O que vale é chegar à resposta, mesmo que para isso seja necessário um período de devaneio que pode levar centenas de anos. Centenas de anos, como assim?!? “O Teorema de Fermat demorou mais de 350 anos para ser resolvido e o matemático que o solucionou estudou-o por sete anos até chegar à solução”, afirma Brolezzi.

Nesse meio-tempo, provavelmente houve momentos em que o matemático distanciou-se do teorema para arejar a mente; quem sabe pensou em desistir. “Quando não acho a resolução, deixo o problema de lado por um período. E, quando volto, vejo as coisas com outros olhos”, diz o físico brasileiro Marcelo Gleiser, que leciona no Dartmouth College, nos Estados Unidos. Mesmo se afastando da questão a ser resolvida, é preciso conservar a meta de ter algo a solucionar, e assim pode-se deixar a imaginação agir, sem correr o risco de se perder na viagem. “A coisa largada, sem uma motivação, pode atrapalhar mais do que ajudar. Precisamos ter uma meta. E, aí, deixar rolar”, diz Gleiser.

Rede de conexões

Na publicidade, que é um universo viajante por natureza (afinal, os criadores são pagos para convencê- lo de que aquela geladeira do comercial é bem melhor que a que você já tem), o devaneio é o combustível para a criação. Mas não pense que, só porque você vê bichos de pelúcia vendendo carros na TV, os publicitários compartilharam o narguilé com a centopeia de Alice no País das Maravilhas. A viagem na maionese publicitária tem suas regras – e todas bem estabelecidas. O criativo de uma agência precisa dar vazão a uma série de pensamentos que podem ser desconexos para vender ou divulgar um produto. Por isso ele precisa, além de um repertório criativo e imaginativo, ter disciplina. “Acima de tudo é necessário organizar a mente para ‘voltar à Terra’ e desenvolver uma campanha”, afirma o publicitário Pedro Pletitsch, diretor de arte da agência GNOVA e professor da Miami Ad School/Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP), onde ensina publicitários a botarem os pés no chão após seus devaneios.

Ao pensar em como vender um produto ou ideia (o que em outras áreas equivale a fazer um relatório diferenciado, preparar uma apresentação pra lá de convincente, escrever um livro e desenhar um móvel...), é imprescindível apelar para a mente racional. Só assim se consegue criar uma conexão entre o lúdico e o real. “Dizem que ser criativo é criar conexões entre coisas que parecem ser desconexas. É o caso do físico Isaac Newton, que mostrou que a mesma força da gravidade fez a maçã cair na sua cabeça e faz a Lua girar em torno da Terra”, afirma Gleiser.

“O pensar resulta de várias articulações, e quando pensamos é como se estivéssemos nos retirando do mundo, mesmo que seja para pensar sobre o que é real”, diz a professora de filosofia da PUC-SP e terapeuta existencial Dulce Critelli. Precisamos nos desligar da realidade para pensar em qualquer coisa diferente, e temos que permanecer nela para concluir o pensar. Dulce ainda explica que o ser humano é incapaz de ficar no mesmo lugar, de se bastar com as mesmas coisas sempre. Daí ele devaneia, divaga e vai encontrando pistas que o levem a um estado além daquele em que está. “Vivemos pensando no que foi e no que será. O futuro está sempre em aberto e para refletir a respeito dele temos que dar vazão à fantasia. Tudo no mundo caminha para o que não está aqui.”

E assim, pensando no que pode vir a ser, ou melhor, viajando sobre o futuro, cientistas, criadores, intelectuais e gente comum vão delineando a evolução do pensar, da criação e da história. O que seria da medicina sem a penicilina, ou da aeronáutica sem o helicóptero, desenhado por Leonardo da Vinci ainda no século 15 e tornado realidade no século 20? Ao observar as anotações de Da Vinci, muitas delas podiam parecer uma grande viagem naquela época. Mas várias ideias dessa salada “leonardiana” resultaram em coisas reais – inclusive o automóvel.

Comprovação científica É comum as pessoas relacionarem as palavras devaneio, divagação e viagem a ideias desconexas, sem sentido e escapistas em relação à realidade. Mas isso é reflexo da imagem negativa que se construiu em cima do devaneio e da divagação. Freud tem sua parcela de culpa nisso, quando afirmou que sonhar acordado era algo infantil e neurótico – uma falha de disciplina mental. Alguns estudiosos que o seguiram acabaram por tachar crianças mais viajantes de desatentas e hiperativas, enquadrando muitas delas como portadoras do TDHA (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). “Claro que existem crianças com o transtorno, mas é importante cuidar para evitar a patologização da doença em todas as que saem do ‘normal’, segundo os conceitos sociais e da escola”, afirma André Meller Ordonez de Souza, da equipe pedagógica do Colégio Oswald de Andrade (SP).

O problema, diz ele, é que o mundo atual é moldado na produção, no ser multitarefa, e as crianças foram arrastadas junto com essa corrente – tanto que aos 7 anos já têm agendas lotadas como a de executivos. Hoje, o lema é: fazer, cumprir, apresentar. E tudo dentro de prazos determinados; não sobra muito tempo para viajar nas ideias e executar melhor ou de um jeito mais criativo, diferente. “O devaneio vai contra esse mundo de produção e o lúdico, seja do adulto ou da criança, é o único espaço disponível para se conhecer o mundo e a si próprio”, diz Souza.

O psiquiatra Fernando Milton de Almeida, do Núcleo de Estudos do Imaginário e da Memória da USP, concorda com a ideia de que há quem olhe torto para o devaneio porque ele atrapalha a produtividade desejada pelos moldes atuais. “Mas devanear é parte da condição humana. Mesmo que o conhecimento hoje seja acelerado e as pessoas ajam de maneira mais autômata, é fundamental devanear.” Com a mente livre para flanar, o ser humano exercita a imaginação e transita por outros lugares; recolhe material para criar, fica mais receptivo a insigths.

De tão importante, o devaneio está presente até mesmo no dia a dia de quem acha que não se deve perder tempo com pensamentos desnecessários e sonhos malucos. Um estudo realizado por psicólogos da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, apontou que passamos cerca de 30% do nosso tempo devaneando. Isso mesmo: todos nós viajamos na maionese em algum momento do dia. No experimento, enquanto liam romances como Razão e Sensibilidade e Guerra e Paz, os alunos pesquisados eram frequentemente indagados se estavam atentos ao livro ou se estavam com a cabeça em outro lugar. Diante das respostas, veio o veredito de que todo mundo divaga – é normal. “Eu creio que as conexões executivas do cérebro, que estão altamente comprometidas com o pensamento racional e lógico, também são ativadas no devaneio. Portanto, não considero o devaneio algo oposto ao pensamento racional”, afirma Jonathan Schooler, um dos coordenadores do estudo.

O pesquisador diz que é importante percebermos quando devaneamos e que caminho percorremos durante essa viagem. “O segredo é ficar atento aos processos mentais para captar se o devaneio afeta suas tarefas. Se não atrapalha enquanto você está dirigindo, prossiga. Mas se desvia o foco, fazendo com que você freie em cima do carro da frente, tente ter mais consciência do que acontece ao seu redor.” Segundo a pesquisa, a criatividade é maximizada quando as pessoas percebem que suas mentes estão devaneando. “Acho que devaneio sem foco não vai ajudar em nada nossa compreensão ou abertura a novas teorias. Em todo o processo criativo, seja na poesia, seja na matemática, é necessária também uma dose grande de disciplina mental. O ideal é um balanço, uma abertura para os dois lados. Existem muitos caminhos para se chegar ao alto da montanha, mas a montanha é a mesma”, diz Marcelo Gleiser, que afirma só “se sentir humano munido de duas qualidades: devaneio e pensamento lógico.”

Fonte: Vida Simples 

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