terça-feira, 12 de julho de 2011

A marmita nossa de cada dia ficou descolada

Não se sabe ao certo quando esse costume surgiu - as referências históricas sobre esse hábito, tão antigo quanto corriqueiro, são bastante escassas. Mas o ato de preparar em casa a refeição para levar para o trabalho já se tornou tão arraigado na nossa cultura que a marmita virou quase um patrimônio nacional, tal qual o prato feito. Dos camponeses aos executivos de empresas, a receita caseira fundada em ingredientes simples, baratos, mas ao mesmo tempo frescos, saborosos e de fácil preparação, se tornou um emblema dessa relação trabalhador x comida. Relação que começou há tempos, vale dizer: da vinda dos escravos à chegada ao país dos imigrantes europeus que trataram de povoar nossas lavouras em busca de trabalho. Foi o hábito da marmita, inclusive, que caracterizou os trabalhadores do campo como boias-frias, acostumados a sair de casa ainda sem o sol na cabeça e com a "boia" carregada no ombro, que já estava fria na hora de saboreá-la.

Se, por um lado, o costume é antigo - uma obra do dramaturgo romano Tito Mácio Plauto, de 195 a.C., já falava de uma marmita cheia de ouro encontrada pelo personagem Euclião -, ele tem se tornado ainda mais presente na nossa sociedade moderna, em que a busca por uma alimentação mais saudável em meio aos restaurantes fast food e ao tempo cada vez menor para sair do escritório tem se tornado uma preocupação mais presente na vida das pessoas. Tudo por causa da praticidade, do preço e da vantagem de comer um alimento escolhido e preparado por você mesmo, com seus temperos, seu gosto e até suas restrições.



Do seu jeito


Foi exatamente isso que levou a publicitária Mariana Gusmão a optar por levar seu almoço de casa para a agência em que trabalha. Intolerante a lactose, nem sempre ela encontrava um cardápio especial nos restaurantes que costumava frequentar. Passou a levar sua comida quase todo dia - exceto quando tem algum compromisso fora. "Levo arroz integral com legumes cozidos e salada, alguma carne (almôndegas e grelhados) e às vezes massa integral com molho bolonhesa ou sugo. Tem que ser coisa prática e sem muito cheiro, né?", afi rma, lembrando a etiqueta do ambiente corporativo. Acostumada à "comida da mamãe", ela diz que hoje já incorporou o hábito e que, mesmo que não tivesse restrições, iria preferir levar a própria marmita. "Os temperos usados em restaurantes são fortes e as comidas sempre acabam sendo mais pesadas do que a gente gostaria, e com isso você come mais do que deveria. Uma das principais vantagens da comida caseira é poder seguir uma dieta mais balanceada."

Quem prepara o que come, afinal, consegue ter maior controle na qualidade dos ingredientes e na forma de prepará-los. O jornalista Manuel Alves Filho concorda. Consultor de comunicação de uma universidade, ele leva suas marmitas ao trabalho sempre que pode - "e quando a agenda permite preparar as receitas". Mas se força a levar comida feita em casa pelo menos duas vezes por semana. "Assim, posso usar ingredientes mais saudáveis e de maior qualidade que os da maioria dos restaurantes, como azeite extravirgem e óleo de canola ou girassol. Há também um ganho financeiro. Com o que gastaria para comer fora, posso produzir pratos mais elaborados e com ingredientes mais caros, e mesmo assim faço economia", afirma. Quem leva marmita ainda tem a vantagem de se envolver mais com o ato de comer. "Se as pessoas preparassem suas refeições, acabariam por perceber que cozinhar é um grande barato, uma tremenda terapia", diz Alves Filho, que cozinha sempre que pode e mantém um blog sobre gastronomia.

Novo status


Isso representa, aliás, uma nova tendência de comportamento nos escritórios e empresas. Hoje, com as pessoas mais interessadas em culinária e mais dedicadas à prática do fogão, levar marmita ganhou outro status. Se antes muitos tinham vergonha de levar comida pronta ao trabalho, essa onda de se preocupar mais com o que se leva à boca permitiu às pessoas mais conscientes com a alimentação serem vistas com outros olhos pelos seus pares. E que se sintam mais encorajadas a preparar - e comer - suas próprias receitas. Outro fator que ajudou na revitalização da marmita, ou pelo menos que ela fosse encarada sem preconceito, foi a releitura que alguns chefs brasileiros fizeram desse antigo hábito.

Como é o caso de Ana Luiza Trajano, do restaurante Brasil a Gosto, em São Paulo, especializado na diversidade da gastronomia típica do nosso país. Entre andanças e pesquisas sobre a identidade brasileira no prato, colhendo ingredientes e histórias, Ana Luiza achou por bem homenagear na sua co zinha os trabalhadores rurais do interior do estado de São Paulo, onde nasceu. "Sou de Franca, perto de Ribeirão Preto, e ali via, desde menina, os boiasfrias que trabalhavam nos canaviais da região. E resolvi colocar no cardápio do restaurante as ‘boias-quentes’, pratos triviais da nossa culinária servidos como a marmita desses trabalhadores, com a única diferença de serem servidas quentinhas", diz ela, que mantém as boias há cinco anos no menu. Entre as receitas preparadas pela chef estão o picadinho, o bife acebolado, a moqueca, a carne-seca, entre tantas variações da comida do dia a dia. "Sempre acabo me voltando para o trivial, o simples. Até no aniversário do meu filho resolvi fazer miniboias para que as crianças pudessem sentar e comer, para que tivessem opção de saborear uma refeição do cotidiano mesmo."

Entre as receitas desenvolvidas pela banqueteira Neka Menna Barreto, a marmita está entre as opções oferecidas nos eventos que costuma fazer. "Eu amarro a marmita em um pano, faço um nó, e coloco uma colher ou garfo enlaçados e sirvo assim. As pessoas adoram porque isso remete a um cuidado da comida feita em casa, preparada com carinho. A marmita alimenta o estômago e as lembranças", afi rma. Neka diz que esse costume mostra uma forma de educação, de querer preservar a comida da sua casa. "Quando eu vejo uma pessoa que carrega sua marmita, penso que ela é bem-educada. Porque é uma questão de educação, de querer preservar a comida da sua casa. Significa que a pessoa teve uma mãe, avó ou alguém que cozinhou para ela na infância", diz.

Tradição de gerações


Esse ensinamento está ainda mais presente na cultura japonesa, onde a marmita, lá chamada de bento (ou bentô, como pede a pronúncia em português), é muito enraizada no cotidiano dos japoneses - tanto das crianças nas escolas quanto dos adultos nos escritórios. Trata-se de uma tradição aprendida com a mãe e a avó. Desde que são pequenas, as crianças se habituam a levar para a escola a refeição preparada pela mãe, que a decora com todo o zelo, para incentivar seus filhos a comerem tudo. A comida, feita com o carinho materno, tem tanto apelo aos olhos quanto ao paladar. Preparar a comida em casa exige uma dedicação e um capricho todo especial. As marmitas japonesas são muito coloridas, detalhadas, minuciosas: parecem até obras de arte, tamanho o apuro com que são feitas. A explicação é que os japoneses olham para a marmita com muito respeito e também com certo pesar de desfazer o trabalho que foi feito com tanto apreço. Dessa forma, comem com mais cuidado, observando com prazer as cores, os sabores. "E, assim, comem mais devagar, saciando a fome aos poucos, sem precisar devorar um monte de coisa para se sentirem satisfeitos, como acontece aqui no Brasil", explica a professora Hélia Harumi Sato, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, que chegou a morar no Japão para especializações em alimentação.

O bentô das crianças não se difere muito do dos adultos: além de arroz, peixe frito, há tomatinhos, um ovo e muitos legumes coloridos, para encher os olhos. Nada de bolacha, salgadinho ou refrigerante. "Os japoneses têm uma preocupação muito grande com a alimentação, sabem da necessidade de fazer refeições saudáveis e controlam muito bem o ganho de peso, por isso estão acostumados a comer pouco", diz a professora. Outra questão que faz esse tipo de marmita ser tão presente na cultura do país é o preço dos alimentos por lá. "Sair para almoçar ou jantar é muito caro, principalmente nas cidades maiores, o que faz com que a comida feita em casa seja ainda mais valorizada. Comer fora é, muitas vezes, visto como supérfl uo, já que a prioridade é, por exemplo, juntar dinheiro para pagar os estudos dos filhos, entre outras coisas", afirma.

Essa educação de poupar e valorizar o que se come é aprendida desde cedo pelos japoneses, que são muito disciplinados em suas atitudes, inclusive as que envolvem a alimentação. "As crianças se acostumam a comer o que os pais comem, aprendem pelo exemplo", explica Hélia. E o exemplo que têm é o melhor: os bentôs são variados, coloridos, o que indica uma série de nutrientes diferentes que vão complementar a alimentação dos pequenos. Conforme crescem, eles aprendem a preparar a própria refeição, colocando nela tudo o que necessitam para uma vida saudável e muito do carinho aprendido em casa. A marmita por lá, tal como aqui, é um costume que nos liga também pelos laços afetivos que são tecidos através da alimentação. Um costume que, pelo visto, deve perdurar ainda por muitas gerações.

Fonte: Revista Vida Simples

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